Nota das Pastorais Sociais do Campo
O ano de 2019, início do governo
Bolsonaro, como já se temia, começou sob o signo da tragédia. No dia 05
de janeiro um trabalhador rural foi assassinado e outros nove ficaram
feridos, três gravemente, em um ataque por seguranças privados de uma
fazenda em Colniza (MT), grilada por poderosos políticos do estado. No
mesmo município, em maio de 2017, ocorreu um massacre, que resultou na
morte de nove camponeses. A região é cobiçada por suas imensuráveis
riquezas em madeira e minério.
A violência marca geneticamente a
estrutura agrária do País, base do poder até hoje, responsável por
milhares de mortes de camponeses, indígenas e quilombolas, quase
totalidade impunes. Além de desterritorializar e provocar migração
forçada, promove o trabalho análogo ao trabalho escravo. Há sinais de
que 2019 vai ratificar o processo histórico de violência e injustiça
contra homens e mulheres do campo, das águas e das florestas.
A invasão ilegal e criminosa de Terras
Indígenas foi intensificada, indicando a prática de uma nova fase de
esbulho possessório destas terras no Brasil. Por meio de discursos
preconceituosos e iniciativas administrativas, de modo especial a Medida
Provisória 870/19, que reestrutura os órgãos do governo federal, o
governo agride frontalmente a Constituição Brasileira e os direitos
indígenas nela consagrados.
A tragédia de Brumadinho (MG), em 25 de
janeiro, anunciada e calculada, sinaliza que já vivemos tempos de
barbárie. Uma grande mineradora, estatal privatizada, se reitera no
crime de permitir o rompimento de uma barragem de rejeitos tóxicos. Mais
de 300 vidas humanas ceifadas e destruídos importantes ecossistemas do
Rio Paraopeba, tragédia a chegar em breve ao já combalido Rio São
Francisco, alardeado “rio da unidade nacional”. Nesse contexto é
extremamente grave a flexibilização da política ambiental brasileira e o
sucateamento dos órgãos responsáveis, o que possibilita menos rigor nos
processos de licenciamentos de atividades desse porte como também não
garante condições de uma fiscalização adequada e rigorosa.
As decisões já tomadas e os discursos do
presidente e dos que assumiram ministérios e altos cargos no Executivo,
como também as primeiras decisões do Congresso Nacional, ainda mais
conservador, ameaçam tempos ainda mais sombrios para comunidades rurais,
tradicionais, quilombolas, migrantes internos e indígenas, alvos
preferenciais da expansão ilimitada dos empreendimentos do capital
financeiro-agrário-minerário.
A bancada ruralista impera absoluta. Ao
Ministério da Agricultura, entregue à ex-presidente da Frente
Parlamentar da Agropecuária, conhecida também como “bancada ruralista”,
foram transferidas competências até então dos Ministérios do Meio
Ambiente, como o Serviço Florestal Brasileiro, e do Desenvolvimento
Social e da Secretaria Especial de Agricultura Familiar. A criada
Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, alojada na Agricultura, terá
a competência da identificação, delimitação, demarcação e registro de
terras ocupadas tradicionalmente por indígenas e quilombolas,
competências que eram exclusivas da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e
do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária),
esvaziados e entregues a militares. À frente dela ninguém menos do que o
presidente da UDR (União Democrática Ruralista), expressão mais acabada
do reacionarismo agrário. Também nesta pasta está colocada a política
de Pesca e Aquicultura, que se mantém como secretaria, sob a liderança
do setor da pesca industrial do sul do país. Os discursos recentes do
secretário dão indícios de que o foco da política de pesca é favorecer a
pesca industrial e a aquicultura através de mudanças drásticas na
legislação ambiental e enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e
gestão. Em paralelo, um discurso duro e perspectivas de ações cada vez
mais rigorosas para diminuir e controlar o acesso dos pescadores
artesanais ao seguro defeso. A Medida Provisória 870/19 propõe uma
ruptura com a legislação atual que garante a gestão compartilhada como
princípio para ordenamento e gestão da pesca. Se for aprovada a gestão
será entregue apenas ao setor privado, com consequências drásticas para a
pesca e o consumo de pescado no país.
As demais atribuições da FUNAI vão ficar
sob a responsabilidade do Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, totalmente subalternas. O cargo estratégico de Ouvidor
Agrário, antes ocupado por um desembargador, agora fica em mãos de um
Coronel de Infantaria, revelando qual vai ser o tratamento do governo
militarizado para os conflitos no campo.
As populações do campo estão sendo
rotuladas com termos pejorativos e preconceitos retrógrados. Os
indígenas como lenientes e manipulados, os quilombolas como inúteis e
preguiçosos e os sem-terra como criminosos, massa de manobra de
bandidos, e as escolas dos acampamentos e assentamentos como
“fabriquinhas de ditadores”. O direito à propriedade é erigido em
direito supremo, acima da posse efetiva e produtiva, jogando ao lixo a
exigência constitucional da função social para a propriedade.
Patente está que o novo governo aposta
tudo na desconstrução de canais de diálogo, como afirmou com todas as
letras o Secretário de Assuntos Fundiários quando asseverou que não terá
nenhum diálogo com o MST, no que teve que voltar atrás, após
pronunciamento do Ministério Público. Claro está que para os movimentos
sociais o que está reservado é policiamento e criminalização. Com base
em posições ideológicas torpes e malformadas, o presidente tenta romper
as ligações institucionais próprias dos governos democráticos, a
intersecção necessária – preservadas as autonomias – entre o poder
constituído e os movimentos e organizações sociais.
Não escapa a Igreja Católica, monitorada
e ameaçada, quando se coloca ao lado das maiores vítimas destes
desmandos cruéis, através das pastorais sociais, como o CIMI e a CPT,
que com a CNBB constituiriam a “banda podre da Igreja Católica”,
conforme declaração do então candidato Bolsonaro. Torna-se ela também
vítima preferencial, quando se põe a conhecer melhor a realidade e os
riscos que corre a Amazônia, com suas imensas riquezas. A Rede Eclesial
Pan-Amazônica (REPAM) tem colaborado de forma decisiva na preparação do
Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia, convocado pelo Papa Francisco, para
outubro de 2019, em Roma. O processo de escuta das bases eclesiais das
dioceses e prelazias suscitou uma tomada de consciência da necessidade
de a Igreja se aproximar mais dos povos da Amazônia, em seus históricos e
crescentes desafios.
A anunciada Reforma da Previdência ao se
tornar capitalizada pelos bancos, sob a falsa propaganda de maior
justiça na cobrança das contribuições e de fortalecimento do Estado,
será nova estratégia de tirar dos pobres para dar aos ricos. Passa ao
real gerador do déficit da Previdência, as dívidas não cobradas de
empresas e os privilégios, e sacrifica ainda mais os pobres com mais
tempo de trabalho e de contribuição, limitando e redefinindo o pagamento
de valores abaixo do salário mínimo. Impõe aos segurados especiais, em
especial do meio rural, a mesma proposta para os demais trabalhadores,
não observando as condições específicas desse grupo social.
Para as Pastorais do Campo, a gravidade
do momento requer de todas e todos nós, cidadãos e cidadãs, povos,
comunidades, movimentos e organizações da cidade e do campo, igrejas e
demais entidades civis, clareza, criatividade e unidade, para
compreender e combater com destemor a aliança nefasta formada entre uma
casta política nacional colonizada e militarizada, e os interesses do
capital financeiro-agrário-minerário global.
Desde o fim do regime militar, em meados
dos anos 1980, o diálogo tem sido garantidor de um equilíbrio mínimo de
forças dentro da arena sócio-política, assim não permitindo o
desequilíbrio em desfavor das categorias sociais mais frágeis e
vulneráveis. A negação do diálogo entre o aparato legal, constitucional
inclusive, e as populações do campo, mediado por suas legítimas
representações sociais, resultará no agravamento desta já trágica
realidade fundiária no Brasil.
Urge persistir e reinventar formas mais
eficientes da luta pela vida, tecidas na esperança invencível dos povos,
garantindo espaços horizontais de real diálogo e construções conjuntas
de alternativas. Nisto, é imprescindível a solidariedade internacional.
Precisamos acreditar na resistência e resiliência ancestrais das
comunidades, que há séculos enfrentam opressores e seus carrascos. É na
mais densa escuridão da noite que se aproxima a aurora de um novo dia: O
Deus de Jesus Cristo Libertador está conosco e não abandona os pobres e
pequenos, jamais!
Como diz o canto bíblico de nossas comunidades, “se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem os poucos caminhos, mil trilhas nascerão”!
Pastorais Sociais do Campo:
Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP),
Pastoral da Juventude Rural (PJR),
Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM),
Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM),
Cáritas Brasileira e Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Brasília, 27 de fevereiro de 2019
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